30/08/2009

Depois da passagem do fogo

(Fotos de Rui André, Verão de 2003)
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27/08/2009

A história do cágado, de Almada Negreiros

(…) Eu não sabia por que é que pensava na história do cágado e do homem muito senhor da sua vontade, a única de que tinha gostado verdadeiramente no livro de contos e novelas do autor de «A Invenção do Dia Claro». Não sabia, mas pensava. O homem a desistir da procura, a tapar o buraco, a remover a terra da imensa montanha que involuntariamente tinha levantado, até que da terra da primeira pazada, a da primeira vez em que tinha cravado a pá no chão, dessa terra aparecia o cágado. No meio da confusão que reinava no centro de comando das operações de combate ao fogo, eu pensava na história do homem muito senhor da sua vontade que de repente se punha à procura de um cágado e por causa disso ia até ao outro lado do mundo. Seguia o meu irmão, já de volta à carrinha, de certeza porque também ele achava que nada havia a fazer naquele lugar. Eu estava ali mas ao mesmo tempo não estava. Pensava nas peripécias do conto escrito pelo autor de «A Invenção do Dia Claro», quase que o lia, numa recordação de várias leituras que tinha feito dele. (…)
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», pág. 138
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(Imagem: José Sobral de Almada Negreiros, 1893-1970, auto-retrato)
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A foto da capa

(Foto de Rui André, Verão de 2003)
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25/08/2009

Sozinho

(…) O que eu esperava era encontrar um enorme corrupio por ali, carros de bombeiros, ou de particulares que andassem também no combate às chamas; até algumas viaturas distintas de políticos nem por sonhos dignos de distinção, ou algum helicóptero mais destemido para se aventurar à noite pelos ares pintados de vermelho. E jornalistas, também jornalistas, sobretudo se houvesse políticos. Mas não. Nada. Ninguém. Por mais que forçasse a vista, eu não descobria nenhum sinal capaz de contrariar a ideia que entretanto tinha ido formando ao percorrer a estrada nova: estava sozinho. (…)
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», págs. 15 e 16
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(Foto de Rui André, Verão de 2003)
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14/08/2009

Rasputine a preto e branco

(…) Estava em campo aberto, desprotegido se me atirassem alguma coisa, até uma bala, podiam disparar contra mim, mas por outro lado sentia que ali em campo aberto talvez controlasse melhor um ataque directo. Alguém que corresse para mim teria de ficar visível durante uns segundos, percorrer alguns metros até me alcançar. Mesmo que fosse o homem com figura de Rasputine a preto e branco. (…)
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», pág. 43
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10/08/2009

O jornal dos dias úteis na república

(…) Para pedir milagres talvez valesse a pena pedir logo um maior a ver se pegava, um milagre que fizesse o ribeiro desatar a correr pela encosta acima até à linha de fogo, e aí separar-se, meio ribeiro para um lado, meio ribeiro para o outro, sobre a linha de fogo, e depois de apagá-la as águas, as que não se evaporassem na luta com as chamas, essas águas valentes haveriam de descer apressadas pelos montes abaixo até ao vale, e aí o ribeiro correria novamente, depois daquele milagre de que muito se falaria. Quem sabe até se falaria dele nalgum ministério onde tratassem do combate aos incêndios, talvez até fosse parar ao jornal que nos dias úteis a república fazia publicar, e quem sabe algum figurão dos que nos fogos não apareciam, ou apareciam de longe e com jornalistas em redor, de preferência com transmissão directa – rádios e televisões –, talvez algum desses assinasse no fim, não como era conhecido mas com o nome completo; talvez assinasse depois de um arrazoado de difícil compreensão até à terceira leitura, que os ribeiros, sim, apenas esses, porque com rios era perigoso, pela dimensão do caudal, mas ribeiros sim, e até outros cursos de água menores, barrancos, regatos, os regos das águas das hortas, qualquer um servia, era legal, podiam ir todos em força correr para onde as chamas ardiam, bastava que se desse o milagre que a lei não proibia, que até incentivava, e se fosse preciso algum subsídio das europas para ajudar a água a subir os montes também se tratava de tudo, mais papel menos papel, papeladas, sempre as putas, perdão, que esse termo nunca seria aceite no jornal editado pela república, quando muito o raio das papeladas; e lá iam os cursos de água do ribeiro acabar com as chamas, iam direitos a elas, às putas das chamas, perdão, ao raio das chamas, direitinhos, não se punham à espera no sítio por onde corriam, nem operavam os milagres em direcção às estradas de alcatrão para só aí anularem as chamas, se pudessem, como era permitido e ordenado às águas que saíam das mangueiras dos autotanques.
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», págs. 76 e 77
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02/08/2009

O homem do copo de whisky

(…) A certa altura, talvez fosse ali, ou talvez fosse na própria recordação do conto, havia um outro homem, aos ziguezagues, de fato e gravata, e sempre aos berros. Dava ordens por todo o centro de comando das operações de combate ao fogo, dava ordens a quase toda a gente, e quase toda a gente parecia obedecer-lhe, de cabeça em baixo. Havia pessoas com a língua de fora, e algumas delas tinham a cabeça tão em baixo que se quisessem podiam com a língua tocar nas botas do homem aos berros que ziguezagueava. O homem dava ordens, ali ou no conto de Almada Negreiros, eu nem sabia, o que sabia é que ele dava ordens, de copo de whisky na mão.
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», pág. 139
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