19/03/2009

Um texto

Um texto sobre o romance «Uma Noite com o Fogo» foi publicado aqui, no «Diário Digital». É da autoria do jornalista Pedro Justino Alves.
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Por dentro dos incêndios
«Uma Noite com o Fogo», obra de António Manuel Venda editada pela Quetzal, aborda um tema pouco comum na nossa literatura, embora seja um tema frequente nas nossas vidas pelo menos durante os meses quentes do ano: os incêndios. Só por isso já merece um destaque…
Falar de um assunto que afecta milhares de pessoas, directa e indirectamente, não é tarefa fácil. Ainda mais quando o assunto deixa marcas profundas em quem viveu essas experiências. Infelizmente, os incêndios são tema recorrente nos noticiários nacionais, principalmente no pico do Verão, quando, atónitos, ouvimos de tudo um pouco, críticas, palavras de esperança, desespero e, muitas vezes, apenas silêncio, silêncio daqueles que não compreendem porque estão a viver um autêntico inferno.
«Uma Noite com o Fogo» consegue transmitir um pouco desse drama, já que a sua totalidade só saberá aquele que o viveu. E, por muito que se domine a arte de juntar palavras, nunca ninguém será capaz de transmitir verdadeiramente aquilo que sentiu.
O livro decorre numa única noite. Depois de ver pela televisão o local onde passou a sua infância atacado pelo fogo, o narrador parte de imediato ao encontro das suas raízes. Não sabe por quê, responde apenas a um impulso, mas parte. O primeiro impacto com o fogo, talvez o principal personagem do livro, surge no mesmo local onde dias antes tinha ficado parado devido à passagem de um rebanho de ovelhas, num dia calmo, «(uma viagem) interrompida tantas vezes só porque me apetecia ficar a observar alguma coisa, ou tirar uma fotografia…» (página 11)
«Uma Noite com o Fogo» vive essencialmente das memórias do narrador, da dor de ver parte da sua infância tomada pelo fogo e da sua luta por manter vivo o que as chamas anseiam por destruir.
Quando chega ao seu destino, dá-se a desilusão de se encontrar sozinho, sem «carros de bombeiros, ou de particulares que andassem também no combate às chamas; até algumas viaturas distintas de políticos nem por sonhos dignos de distinção, ou algum helicóptero mais destemido para se aventurar à noite pelos ares pintados de vermelho. E jornalistas, também jornalistas, sobretudo se houvesse políticos. Mas não. Nada. Ninguém.» (páginas 15/ 16)
A dor, a raiva e o desespero invariavelmente aumentam, ainda mais porque o narrador procura o seu irmão, que também está a combater o fogo no mesmo local, mas não no mesmo espaço que ele. Se antes o silêncio nocturno dominava o monte, agora é o barulho do mato a arder que comanda os seus pensamentos, que vagueiam pelas memórias das dores da avó, pela ponte que unia os montes, a fobia de apanhar uma chave, o cheiro da azenha, os estudos…
«Uma Noite com o Fogo» questiona também as decisões dos bombeiros e as «baboseiras» dos políticos, sempre ávidos de aparecerem. Nas páginas 56/ 57 o autor coloca uma pergunta que alimenta muitas mentes que já viveram o drama dos incêndios:
«Como era possível deixar o fogo à solta, esperá-lo apenas no recato das estradas nacionais, no alcatrão por onde fugir seria apenas uma questão de segundos? Esperá-lo aí, num descanso, até que ele chegasse, depois de tudo ter queimado, deixando atrás de si o chão coberto de cinza e troncos das árvores que fossem capazes de aguentar-se de pé, todos secos, com as pernadas que conseguissem manter, secas elas também, até com as folhas que se aguentassem, inevitavelmente secas? Quase a superfície de outro planeta, isso deixaria o fogo atrás de si…»
Após encontrar o irmão, ambos partem para essa luta solitária contra o fogo, semelhante à de milhares de outros que nos incêndios que têm devastado o país procuram combater o monstro de inúmeros tentáculos, que absorve tudo à sua frente.
O livro é antes de tudo um grito de raiva contra a incapacidade política para resolver uma questão que todos já sabem que se irá repetir, um grito de revolta perante aquilo que os incêndios roubam às vidas das pessoas.
Principalmente o seu passado…
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