07/04/2009

Autoficção

Texto de Manuel Nunes, no seu blogue «Disperso Escrevedor», sobre o romance «Uma Noite com o Fogo».
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O romance «Uma Noite com o Fogo», de António Manuel Venda, é o relato de uma experiência vivida, ideia sustentada pela epígrafe de Mario Quintana: «O autor nada mais fez do que vestir a verdade…».
Porém, a experiência vivida não é descrita como numa simples crónica. A verdade dramática vestida pelo autor não prescinde da ficção, esse canto de sereia em que acreditamos como se fosse a realidade pura.
É essa mistura de referencialidade e imaginação que nos leva a classificar o texto de António Manuel Venda como uma autoficção, designação de género definida basicamente como um relato de conteúdo simultaneamente autobiográfico e romanesco em que se regista identificação nominal entre autor, narrador e protagonista.
Apesar de em «Uma Noite com o Fogo» essa identificação não ser explícita, a sobreposição daquelas três instâncias não deixa de estar presente ao longo de todo o texto. Percebe-se bem de onde e para onde viaja o protagonista naquela noite em que o fogo andou à solta. Percebe-se bem onde ficam aqueles montes de sobreiros e medronheiros assolados pela fúria das chamas. Na personagem que se defronta com o fogo não conseguimos ver outra figura que não seja a do próprio autor, lá na serra algarvia onde nasceu e onde viveu os tempos da infância e da juventude, a tal floresta do sul que deu nome ao seu blogue – uma floresta destroçada pela incúria de todos, não só dos que se sentam nas cadeiras do poder.
O tempo da história resume-se a uma única noite, o suficiente para emocionar o leitor, tanto pelo combate desproporcionado contra a calamidade natural (?), como pela intervenção frequente da memória autoral numa espécie de «recherche du temps perdu» – um mergulho no mundo da infância e da inocência perdida.
Um livro muito interessante de António Manuel Venda, dentro do género a que nos habituou, tão raro, por enquanto, nas nossas letras.
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3 comentários:

  1. António:

    Exactamente!
    Há sempre qualquer coisa de auto-ficção(prefiro esta grafia, apesar de perceber que a outra é mais sedutora) naquilo que se escreve.

    De certa maneira, até a crónica - por mais distanciado, independente e isento que seja o cronista - tem sempre qualquer coisa de ficção.

    Mas esta leitura que Manuel Nunes faz do seu livro está muito próximo da minha, como sabe.

    Agora, ao Manuel Nunes, só resta convencer o Carlos Pinto Coelho. Mas não vai ser fácil...

    Um abraço.

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  2. Manuel, eu também prefiro auto-ficção, mas como estava assim deixei ficar.

    Esta leitura do Manuel Nunes também é muito perceptível para mim; muito, muito clara.

    Abraço

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  3. O termo autoficção ainda não faz parte do léxico. Não consta de nenhum dicionário, nem mesmo do E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, disponível em www2.fcsh.un.pt/edtl/. Em francês e espanhol, nos estudos que conheço, escreve-se “autofiction” e “autoficción”. Em português, nos raros ensaios sobre literatura autobiográfica, aparece sempre como “autoficção”. Daí a adopção desta grafia. Não sou especialista, mas só escreveria com hífen se o antepositivo se ligasse a componente começada por vogal, “h”, “r” ou “s”. Admito, porém,que possa haver diferente forma de escrever, por razões estilísticas ou outras. Curiosamente, uma conferência do neurocirurgião João Lobo Antunes sobre José Cardoso Pires, em finais de 2008, foi apresentada com o título de “Memória e auto-ficção” (com hífen!).

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