10/08/2009

O jornal dos dias úteis na república

(…) Para pedir milagres talvez valesse a pena pedir logo um maior a ver se pegava, um milagre que fizesse o ribeiro desatar a correr pela encosta acima até à linha de fogo, e aí separar-se, meio ribeiro para um lado, meio ribeiro para o outro, sobre a linha de fogo, e depois de apagá-la as águas, as que não se evaporassem na luta com as chamas, essas águas valentes haveriam de descer apressadas pelos montes abaixo até ao vale, e aí o ribeiro correria novamente, depois daquele milagre de que muito se falaria. Quem sabe até se falaria dele nalgum ministério onde tratassem do combate aos incêndios, talvez até fosse parar ao jornal que nos dias úteis a república fazia publicar, e quem sabe algum figurão dos que nos fogos não apareciam, ou apareciam de longe e com jornalistas em redor, de preferência com transmissão directa – rádios e televisões –, talvez algum desses assinasse no fim, não como era conhecido mas com o nome completo; talvez assinasse depois de um arrazoado de difícil compreensão até à terceira leitura, que os ribeiros, sim, apenas esses, porque com rios era perigoso, pela dimensão do caudal, mas ribeiros sim, e até outros cursos de água menores, barrancos, regatos, os regos das águas das hortas, qualquer um servia, era legal, podiam ir todos em força correr para onde as chamas ardiam, bastava que se desse o milagre que a lei não proibia, que até incentivava, e se fosse preciso algum subsídio das europas para ajudar a água a subir os montes também se tratava de tudo, mais papel menos papel, papeladas, sempre as putas, perdão, que esse termo nunca seria aceite no jornal editado pela república, quando muito o raio das papeladas; e lá iam os cursos de água do ribeiro acabar com as chamas, iam direitos a elas, às putas das chamas, perdão, ao raio das chamas, direitinhos, não se punham à espera no sítio por onde corriam, nem operavam os milagres em direcção às estradas de alcatrão para só aí anularem as chamas, se pudessem, como era permitido e ordenado às águas que saíam das mangueiras dos autotanques.
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Excerto de «Uma Noite com o Fogo», págs. 76 e 77
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