09/07/2009

O primeiro capítulo

O pequeno texto de entrada do romance «Uma Noite com o Fogo» já tinha sido colocado aqui. Deixo agora o primeiro capítulo.
(Foto de Rui André, Verão de 2003)
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Era o fogo. Andava à solta nos montes, embora visto dali, a uns cinquenta quilómetros de distância, parecesse apenas uma lâmpada enorme, de luz avermelhada, para iluminar as terras em redor. Ou um sinal. Talvez pudesse parecer isso também, um sinal para os barcos que andassem do outro lado, perto da costa. Eu imaginava estas coisas para o clarão do fogo, até que fosse um aviso para os aviões que sobrevoassem de noite aqueles montes. Não se desse o caso de irem eles lá bater, no sítio que passava dos novecentos metros, no que por pouco não atingia os oitocentos ou até noutro qualquer com menos ilusões de chegar às nuvens. A minha imaginação com os montes, as nuvens e os aviões, depois dos barcos perto da costa. Eu estava na berma da estrada, fora do carro, no primeiro sítio de onde tinha conseguido avistar o clarão. Era pouco mais de meia-noite, a fazer fé no que mostrava o relógio do carro. Lembrei-me de que naquele mesmo sítio tinha estado parado uns dias antes, noutra viagem para sul, ainda de dia, ao fim da tarde. Uma viagem calma, interrompida tantas vezes só porque me apetecia ficar a observar alguma coisa, ou tirar uma fotografia, e interrompida mais uma vez por causa de um rebanho de ovelhas; atravessava a estrada sob a orientação de um pastor agarrado a um papelão com quatro letras mal desenhadas a formarem a palavra «stop». Eu tinha ficado bem um quarto de hora à espera de que o rebanho acabasse de passar, sempre com o pastor a tentar apressar as ovelhas e com três cães a ajudarem. Primeiro as ovelhas a esforçarem-se, destrambelhadas, parecendo que avançavam por cima umas das outras, mas depois tudo muito mais lento. O rebanho a estreitar, a estreitar, até se tornar numa fila. As ovelhas, também uns poucos carneiros e alguns borregos, tudo em fila, com o pastor tão impaciente como eu e sempre de papelão bem levantado. A fila dos animais doentes, uns coxos, outros com um bocado de uma pata em falta, outros apoquentados por males ainda piores. E eu a ver, dentro do carro, sem me lembrar de nada que pudesse fazer para retomar a marcha.
Uma coincidência, apenas isso. O lugar da passagem demorada das ovelhas, o lugar do pastor com o papelão do «stop», era o mesmo de onde eu tinha acabado de perceber o clarão do fogo. Agora nada me impedia de prosseguir com o carro acelerado, nada a não ser o clarão. Ele é que me fazia estar ali parado, para ver se acreditava, ou talvez na esperança de que ao fim de uns minutos acabaria por desaparecer. Tentei perceber se de lá, dos montes, vinha apenas aquela imagem, ou se vinha mais alguma coisa. Pensei em fagulhas, mas logo disse para mim próprio que não poderiam chegar tão longe. Se o clarão não fosse avermelhado, se fosse mais de tons amarelos, talvez eu acabasse por pensar que do outro lado dos montes toda a terra até ao mar era ocupada por uma cidade, uma metrópole gigantesca, um mundo feito de luz. Mas não, o tom avermelhado não deixava adivinhar nenhuma cidade, só se fosse o próprio inferno. O inferno uma cidade... Lembrei-me disso. Lembrei-me da minha ideia do inferno, a que tinha desde a infância, uma cidade moderna, com muitos prédios, ou antes, com arranha-céus – talvez a expressão mais adequada para o caso. Era uma cidade sempre com pessoas de um lado para o outro, e com automóveis, bicicletas, autocarros, comboios, o diabo a quatro. Só que era tudo vermelho e nalguns sítios um pouco enegrecido. A cidade ardia mas nada se queimava, como se o fogo fizesse as vezes do ar e toda a gente, tal como os animais e as plantas, respirasse o ar das próprias chamas. O ar sempre a tremer… Era assim que eu imaginava o inferno, desde a minha infância, a partir de umas referências desordenadas que tinha ouvido uma vez a um padre que aparecia na vila sempre nas mesmas alturas do ano, quando era preciso fazer mais confissões; um padre de rosto tenebroso e modos bruscos conhecido simplesmente como «o franciscano».
Mas do outro lado dos montes não estava o inferno, estavam cidades só que cidades normais, e vilas e aldeias, também elas normais. O inferno, se se quisesse falar de inferno, devia estar apenas nos próprios montes. Era aí que eu tinha de chegar, e para isso bastava-me voltar ao carro e conduzir durante mais trinta ou quarenta minutos. Foi o que fiz, voltei ao carro, e sempre de olho no clarão, que se mostrava imóvel. Podia até pensar-se num gigante adormecido no meio do escuro, lá bem alto, e ainda longe. Mas eu sabia que não era um gigante adormecido. De resto, sabia poucas coisas mais... O que me tinha dito a minha mãe, e as palavras apressadas do meu irmão, para o telemóvel, já comigo em viagem; ele a dizer que andava de um lado para o outro à procura de um carro de bombeiros para levar para os montes e que depois, aí, provavelmente estaria incontactável por falta de rede. Nos montes não havia antenas das operadoras de telemóveis, e se houvesse até já poderiam ter sido tomadas de assalto pelo fogo, que nesse caso pouco mais haveria de deixar do que ferros retorcidos cobertos pela cinza. Eu tinha tentado falar com o meu irmão depois daquela chamada, mas dava sempre sinal de o telemóvel estar desligado. Imaginava-o pelas estradas de terra com um carro de bombeiros, porque eu achava que ele tinha conseguido arranjar um, não sabia como, mas achava que sim. Daí a pouco eu próprio poderia ver esse carro e talvez até ajudar a apagar as chamas com uma das mangueiras.
Tinha acabado de deixar a estrada secundária e conduzia já pelo itinerário principal, que seguia para sul quase paralelo à auto-estrada. Uns trinta quilómetros, não mais, era o que eu tinha de percorrer até chegar ao desvio para uma estrada nova que entrava mesmo pelos montes onde o fogo parecia mandar. O clarão continuava à minha frente, cada vez a mostrar-se maior e mais acentuado. Eu ia a conduzir muito depressa, mas nem me apercebia disso. Era aquela imagem do clarão que me fazia acelerar, como se apenas ela comandasse o meu cérebro, ou como se comandasse directamente o carro, sem que eu ali fosse necessário para nada. Fui tomando consciência da velocidade aos poucos, com as ultrapassagens, pela tranquilidade que notava nos carros que como o meu seguiam para sul. Não eram muitos àquela hora. Avistava um e em meia dúzia de segundos ele ficava para trás; sempre a mesma coisa, a cada carro, até que reparei nos números a que chegava o painel indicador da velocidade.
Fiquei assustado, percebi que ia completamente descontrolado, longe de qualquer prudência; e ainda fiquei pior ao avistar à minha frente o desvio para a estrada nova por onde haveria de chegar aos montes. Não esperava vê-lo assim tão depressa, por isso aquele trajecto desde a saída da estrada secundária em que por vezes atravessavam ovelhas só poderia ter sido feito na velocidade inconfessável que o painel exibia. Mais do que uma irresponsabilidade, tinha sido uma estupidez, grande, muito grande, capaz de em dois ou três segundos fixar-me o destino no tronco de alguma árvore, ou no fundo de uma ribanceira. Levantei lentamente o pé do acelerador, como se uma coisa fosse o susto e outra a reacção a esse mesmo susto, e o carro pareceu ir acalmando, devagar, para atingir uma velocidade de bicicleta. Tanto que à chegada ao desvio até um cão que correu de cabeça perdida desde um casebre próximo – um cão preto, enorme, muito gordo, de olhos verdes bem acesos –, até ele mesmo com a sua movimentação atabalhoada quase conseguia abocanhar o carro num dos pneus.

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