15/07/2009

Um ministro derrubado à pedrada

(…) E logo a seguir atirei a pedra, com força, tanta força que a vi desaparecer no escuro e só uns segundos depois me chegou o barulho dela a atravessar a ramagem dos amieiros e depois a embater com força na água do ribeiro. Não tinha acertado em nenhum daqueles idiotas que esperavam uma fotografia. Ou então tinha e o barulho na ramagem e depois na água, afinal, tinha sido o idiota atingido a cair ao mesmo tempo da pedra. Era um pensamento, uma espécie de sonho imaginado, momentâneo, agora já a parecer-me diferente dos outros sonhos confusos que me invadiam por vezes o sono. Como eu gostaria de que fosse verdade, que aqueles vândalos estivessem todos ali alinhados e que eu pudesse acabar com a sua incompetência acertando com uma pedra em cada um, uma coisa ligeira, apenas que os tocasse e fizesse com que saíssem dos lugares de empecilho de que eram senhores. Que pudessem ir para casa, cada um para a sua, se não houvesse casos em que partilhassem, nem eu me arriscava a dizer por via de que relações. Lá iam eles para casa, apenas com um galo na cabeça para não se esquecerem de como eram verdadeiramente desqualificados. Um ministro, por exemplo, se lá estivesse – tinha de estar, pelo menos aquele que eu uma vez, cerca de um ano antes, tinha ouvido discursar nas calmas para os deputados da república enquanto ardia uma aldeia a não muitos quilómetros dali –, um ministro até podia depois de aterrar no ribeiro, levantar-se, passar as mãos pelo corpo a ver se não tinha nada partido, e depois andava uns metros até à levada e ia pela parede sempre a par do ribeiro, no sentido em que as águas corriam e em cinco ou dez minutos chegaria à aldeia da antiga casa da minha avó, onde a levada embocava na represa. E aí era só andar mais uns metros que no escuro da noite lá estaria o carro com o motorista para levá-lo para o remanso da capital, a dupla mansidão do seu gabinete onde tudo esqueceria, o tempo suspenso no ar com os outros iguais a ele em desqualificação e vadiagem, de costas voltadas para a linha de fogo, todos diluídos no escuro, esperando que disparasse uma máquina fotográfica mas de repente o que viam era uma pedra a partir da minha mão, ou nem viam, porque para eles eu também era escuro, também estava misturado com o escuro da noite, e a pedra a mesma coisa; apenas ele, o ministro, sentia o embate, confuso por não ter visto disparar nenhum flash e a pensar que ia ter uma foto para a capa de uma revista ou para a primeira página de um jornal, com sorte uma foto em que haveria chamas como pano de fundo. Mas afinal, fundo, apenas o fundo do vale, para onde ele ia com um galo na cabeça, e depois ainda tinha um bom bocado para andar até ao sítio onde o motorista o esperava.
(…)
Excerto de «Uma Noite com o Fogo», págs. 60 a 62
.

Sem comentários:

Enviar um comentário